O Semblante do Falecido
Juvenildo
era um cara simples. Vivia com a
mulher e a cunhada. As irmãs metralhas da vida do pobre, que viviam
infernizando o coitado, só porque ele havia recusado uma boa quantia em
dinheiro, oferecido por sua mãe, dizendo não precisar, porque era feliz do
jeito que estava.
Certo dia Juvenildo
atende ao telefone. Era sua mãe, Dona
Perpétua. As irmãs metralhas pegam
logo na extensão.
A mãe de Juvenildo
mudara de estratégia, oferecendo agora a mesma quantia como herança e como um
bom filho que é, Juvenildo não pode dizer não. Mas havia uma condição. Dona Perpétua sentia que o filho não era
lá muito feliz com a mulher e, embora sempre negara, a mãe resolveu
ir visitá-lo para checar pessoalmente e, dependendo do que iria ver, ela o
poria ou não no testamento.
Para Juvenildo não
fazia muita diferença, mas, para as irmãs metralhas sim, fazia muuuiiita diferença.
Tão logo desligaram o
telefone, Juvenildo foi para a roça, como faz todas as manhãs, enquanto a
mulher e a cunhada mancomunavam como iriam receber a vultuosa soma de herança,
porque havia um grande obstáculo atrapalhando os planos. O marido. O pobre era magro de dar dó.
Pele e osso praticamente. E não
era por falta de dinheiro não, porque a pensão do Juvenildo dava pro
sustento. Era má vontade da mulher de
dar uma comida melhor pro marido (o que sobrava no prato da cunhada).
A mulher então,
pensando em vóz alta, assustou até a irmã, que já não valia grande coisa:
- Esse
miserável vale mais, morto do que vivo. (murmurando)
- O que é que
você tá dizendo ?
- Isso mesmo
que você ouviu.
- Você
enlouqueceu ? Quer nos botar na prisão
?
- Que prisão
coisa nenhuma. Não podemos
apresentá-lo pra mãe dele, com essa cara de doente, quase moribundo.
- E o que
vamos fazer ?
- Vamos
colocar um veneno da comida dele. Ele enfarta e depois chamamos o coveiro para dar um enchimento nele e um semblante
de felicidade no rosto e pronto.
Fazemos uma representação e a mãe do pobre vai ficar com tanta pena que
vai deixar testamento, dinheiro, cartão de crédito e tudo mais.
- E agora, o
que faremos ?
- Vamos
procurar aquela velha que todos chamam de bruxa, que mora lá no alto do morro,
que faz porções poderosas pra qualquer coisa.
Chega a hora do almoço. Juvenildo, antes de ir pra casa, passa
primeiro na birosca pra comprar a sua cachaça 5l e esconde dentro das calças,
porque a mulher o proibira de beber. Juvenildo entra em casa, vai pro banheiro se
lavar e depois corre pro quarto pra esconder a garrafinha debaixo do
colchão. Depois se senta na mesa e
começa a devorar a comida. As irmãs
ficam cochichando:
- Até parece que gosta de veneno.
Juvenildo acaba de comer, dá aquele arroto e vai
pro quarto, dizendo que iria descansar. As irmãs:
-
Tomara que seja pra sempre.
Juvenildo
entra no quarto, fecha a porta, enfia a mão sob o colchão e pega a
cachaça. Toma quase que num gole só e
depois se deita pra enfim relaxar. Lá
na cozinha, as duas ficam resmungando:
- Quanto tempo
leva pra fazer efeito ?
- Sei lá. A bruxa disse que levava só alguns minutos.
A mistura do veneno com a cachaça deixou Juvenildo
com uma baita dor de barriga e como o banheiro ficava dentro do quarto ele
não perdeu tempo. Entrou, sentou,
gritou, peidou, gemeu, fazendo as irmãs acreditarem que o coitado estava
agonizando lá no quarto.
- Você não disse que era rápido ? Escuta só isso. Daqui a pouco até os vizinhos vão ouvir.
Juvenildo deu mais alguns gemidos, soltou uns
rojões e depois parou e foi se deitar.
- Escuta !
- Não tô
ouvindo nada.
- Exatamente. Acho que agora acabou.
- Olha, pelo
sim, pelo não, vamos jogar uma partida de brite e daqui a umas duas horas a
gente vem conferir.
Passado uma
boa meia hora, Juvenildo acorda meio atordoado, pois a cachaça havia cortado o
efeito do veneno. Abre a porta e ouve uma
falação que vinha lá da cozinha. Ele
sai do quarto, chega perto da cozinha mas não entra e fica ouvindo as irmãs
conversarem sobre todo o plano e o pobre do Juvenildo fica indignado. Ele já ia invadir a cozinha pra tirar
satisfação, quando teve uma ideia melhor:
Tomar parte do plano das duas.
Juvenildo
ouve elas dizerem que vão até o quarto checar se ele já havia partido dessa pra
melhor e corre pro quarto, se deita e espera pelas duas.
Quando
elas entram, ele pára de respirar. Elas
parecem não terem certeza do óbito e demoram, deixando Juvenildo roxo, sem
poder respirar. De repente alguma coisa acerta a janela e as irmãs vão ver o que houve. Era a chance que ele tinha de encher os
pulmões novamente.
Mas elas não voltam pro
quarto e vão procurar pelo coveiro, lá no cemitério da cidade.
Juvenildo, que não é
mais bobo, liga para o delegado que era seu amigo de pescaria, conta a história
toda e arma o circo antes da mulher, que quando volta para casa, já
encontra o marido num caixão sobre a mesa de jantar, no meio da sala com as
velas já acesas e improvisa:
- Santo Deus,
mas o que houve aqui ? O que aconteceu
com o Juju ?
- Jujú ? Exclama o delegado.
- Era assim
que eu carinhosamente o chamava.
- Bem,
senhora, a sua vizinha veio para pedir um punhado de açúcar, sentiu um mal
cheiro e viu o falecido caído no chão, depois foi à delegacia me chamar. Explicou o delegado.
A primeira coisa que ela queria era conferir era o
semblante do falecido. Se aproximou
do caixão, tirou o lenço da bolsa pra disfarçar e olhou para dentro do
caixão. Juvenildo estava com o
semblante de felicidade estampado no rosto, imaginando a lição que daria à
mulher e a cunhada.
As duas então começaram a elogiar o defunto
e, à medida que a hipocrisia ia lhe doendo a alma, seu semblante ia se
modificando e fechando. A
cunhada preocupada, cutucou a irmã:
- Veja ! O
semblante dele está mudando. Faça alguma
coisa.
- Fazer o quê
?
- Sei lá, se
vira. A idéia de matar teu marido foi sua
Ao ouvir estas palavras, Juvenildo muda o semblante outravez:
- Veja, o
semblante dele voltou ao que era antes. (cunhada)
- É. E foi depois de você falou aquelas coisas.
- Isso é tolice.
- A é ? Faça o teste. (retruca a irmã)
- Está
bem. Vamos ver... Sabe que estou gostando de ver ele
morto. Pelo menos agora vou poder assar
aquelas galinhas que ele nem deixava a gente chegar perto.
Não
deu outra. Mal ela terminou de falar e
o semblante do falecido fechou novamente.
- Ái meu deus,
que horror. O que vamos fazer ?
- Fazer pra
quê ?
- Como pra quê
? Pra manter o semblante dele sempre
feliz. Pelo menos até enterrarmos ele.
Nessa
hora entra a mãe do Juvenildo, que já sabia do circo armado pelo filho e o delegado.
-
Mas o que é isso ? Então eu venho
para ver o meu filho e o vejo dentro de um caixão ? O que foi que aconteceu ? Pergunta para a nora.
-
Não sabemos, foi de repente.
E o semblante
fecha novamente. A cunhada cutuca. A mulher muda a versão:
- É possível
que ele tenha passado mal.
O semblante
volta ao normal. A mãe questiona de
novo:
- Meu Deus, como ele era
magro. Não se alimentava direito ?
- Ultimamente ele andava sem fome.
O semblante
muda de novo. A cunhada cutuca. A mulher
conserta. E essa seqüência foi se mantendo até que a mulher
cansou de dar desculpas e foi para o quarto com a
irmã. O delegado, como quem não quer
nada, foi atrás e ficou próximo da porta do mesmo quarto, ouvindo a conversa
das duas:
- Não agüento mais essa maldição. Aquela mãe do infeliz me atormentava com
tanta pergunta e aquele desgraçado toda hora mudava de cara. Devia Ter colocado um litro daquele veneno
no prato, pra ver se ele morria até na outra vida.
- Xiiiii, fale
baixo.
- Fale baixo
porquê ? O defunto não pode mais nos
ouvir.
Entra o delegado.
-
Mas eu sim. As senhoras vem
comigo.
O
delegado conduz as irmãs pra fora do quarto.
Ao passarem pela sala, a cunhada cutuca a irmã novamente:
- Minha nossa,
veja aquilo !
- Aquilo o quê
?
- Lá. O Falecido !
A mulher espantada vê o semblante do
falecido não só feliz, mas com um sorrindo de orelha à orelha. E vão às duas direto pro xilindró, por
tentativa de assassinato, já que não houve realmente um falecido. Somente Juvenildo, com um semblante feliz,
por estar vivo, graças à cachaça.
---- Fim -----